Wednesday, December 9, 2009

Vitor Canella, O Acordeonista


O pessoal da atual geração não deve ter a mínima ideia de quem é essa figura.
Somos um país sem memória.
Tive o privilégio de conviver muitos anos com esse músico excepcional, criativo, sensível. Sabia interagir com o público e organizar a melhor sequência de músicas a serem tocadas durante um baile: criar o clima perfeito para dançar era com ele mesmo!

O acordeon, que era quase uma extensão do seu corpo, obedecia ao comando dos dedos que percorriam o instrumento como se tivessem nascido juntos - e que som maravilhoso ele fazia jorrar pelo ambiente, alegrando, embalando sonhos, comovendo e trazendo lembranças do passado guardadas nos corações de tantos que o admiravam.

Tinha um grande defeito; fumar demais, três ou quatro carteiras de cigarro consumidas diariamente. Foi esse vício que o levou precocemente para outra dimensão, onde deve estar dando concertos para os anjos.
Era uma necessidade absurda, incontrolável, que o fez amar menos a vida, já que não conseguia parar de tragar o veneno - aos poucos foi definhando e nos últimos bailes, já tocava poucas músicas, sempre sentado e ofegante, mas também sempre brilhante.
Até que não pode mais subir aos palcos e um grande e escuro buraco abriu ante nós, com a sua ausência.

Pessoa alegre, divertida, contava piadas, bem informado, conversava sobre todos os assuntos, fazia de tudo para não perder uma discussão.
Bom garfo (conhecedor detalhista da boa comida), às vezes tomava um trago a mais e tornava-se jocoso: se isso acontecia quando estávamos viajando, após terminar o baile, ele ia cantando aos berros para o ônibus e não deixava ninguém dormir, às vezes também usava o acordeon para não permitir que o silêncio tomasse conta do veículo.
Portava uma leva tudo enorme, com todos os documentos possíveis ali guardados (diziam que até a escritura da casa). Num certo baile em Pelotas, onde iríamos tocar após um leilão de cavalos, aguardávamos o final do tal evento e fomos até um bar próximo ao teatro. Ficamos um bom tempo ali, conversando, tomando cerveja, dizendo aquelas besteiras que só músicos reunidos numa mesa de bar conseguem formular (e entender...). O tempo passava e nada de terminar o tal leilão, o bar fechou e tivemos que ir embora. Já no teatro, uma hora ou mais se passara e Canela se dá conta de que esquecera a leva tudo sobre uma cadeira ao lado daquela em que estava sentado... Desespero! Saiu correndo de volta ao bar, que para sorte dele servia também de residência para o dono e com a ajuda de um brigadiano, o sujeito foi acordado, desceu até o estabelecimento e... lá estava ela, a bolsa, intacta na cadeira! Poucas vezes vi uma expressão tão grande de alívio no rosto de alguém...

Em 35 anos de carreira, convivi com muitos músicos talentosos, mas o Canella foi o único que me fez ficar de boca aberta enquanto tocava, conseguindo me transportar para outro mundo, um lugar onde podia-se flutuar, levemente, sem problemas, só sentindo prazer com o som!

Em outro baile, em Alegrete, estávamos tocando quando faltou energia elétrica.
Todos os instrumentos calaram, um burburinho de vozes estabeleceu-se no salão.
"Vamos aguardar, logo volta..." Mas que nada, o problema parecia ter sido grave.
Alguém trouxe um lampião e colocou no palco.
Canella pegou o acordeon e começou a tirar melodias dele.
Uma percussão leve ajudou no ritmo - o pandeiro do Touguinha.
E o salão inteiro fez silêncio, ouvindo embevecido a música feita em estado de pureza, sem um plug, sem voltagem.
Alguns pares arriscaram dançar, mas suavemente, para não perturbar a magia daquele momento.
A penumbra, o acordeon, as pessoas absorvendo a beleza inigualável que se criara...

Foram tantas passagens, algumas engraçadas (quando ele não quis pagar um jantar, porque achara muito caro e decidiu comer alguma coisa após o baile, sendo surpreendido pelo preço do lanche que consumiu - era o mesmo do jantar... no fim de noite, vale tudo!), algumas tristes (vê-lo definhando a cada baile, fraquinho, mal conseguindo segurar o acordeon companheiro de tantas apresentações), mas todas brilhantes na execução da arte na qual ele era um mestre.

Vitor Canella - não esqueçam desse nome, uma das glórias musicais do nosso país (ele era catarinense, mas passou a maior parte da vida atuando no Rio Grande do Sul)!

 Tico-tico no Fubá

Saturday, December 5, 2009

E la nave vá


Minha primeira apresentação com o CMNB foi durante a Noite do Lembra, evento que estava marcando a volta do conjunto aos palcos, depois da saída de Edgar Pozzer.
Na verdade, estava entrando para o grupo para "substituí-lo", todas as músicas do meu repertório inicial faziam parte do repertório que ele cantava ali - Piove, El dia en que me quieras, uma seleção de boleros que dividia com o Luis Otávio, algumas bossa-novas - pouca coisa, já que eu era uma "cantora convidada".

Engraçado que, depois de muitos anos atuando com eles e já tendo um repertório bem mais extenso, ainda era apresentada com o título de "cantora convidada", quando na verdade isso não tinha mais significado.

Os primeiros ensaios foram realizados no prédio da loja de móveis do Calcanhoto, o baterista - foram poucos porque o baile já iria acontecer. Fui vestida de branco da cabeça aos pés e gostei daquele clima anos 60 - o conjunto que, antigamente, rivalizava com Norberto nas festas - Renato e seu Conjunto - também apresentou-se e, incrivelmente, ainda existiam resquícios de competição no ar!

Disseram que faríamos esporádicas apresentações, talvez 3 ou 4 por ano.
Mas não esperávamos o sucesso daquele revival; o público adorou e a informação passou de boca em boca: Norberto Baldauf está tocando de novo!
Logo, começaram a pipocar os contratos com viagens por todo o Estado e quando me dei por conta, estávamos tocando todos os fins de semana! Enfim, estava voltando a uma situação da qual me julgara desligada para sempre: voltei a ser uma cantora de bailes!

Mas os primeiros anos foram compensadores, sob o ponto de vista financeiro e musical; ganhávamos muito bem por uma apresentação de quatro horas (tínhamos um diferencial, pois a maioria dos conjuntos tocava 5 ou 6 horas seguidas), principalmente porque atravessamos o período em que podíamos negociar os contratos pelo valor do dólar (bons tempos em que o real equivalia ao dólar...). Ficávamos nos melhores hotéis, comíamos nos melhores restaurantes e só tocávamos em festas chiquérrimas e com convidados VIPs.
Musicalmente, conseguimos atingir um bom relacionamento no palco e o conjunto tinha uma sonoridade própria, principalmente devido ao acordeon do Canela e ao vibrafone do Heitor - ambos os instrumentos proporcionavam um tipo de som ímpar e lembrando bastante os Anos Dourados, que era o ponto que mais atraía o público.
Os casais maduros queriam relembrar e os mais jovens, conhecer e curtir músicas do passado.
Nosso repertório era basicamente constituído por músicas dos anos 50, 60 e 70, com a execução dos clássicos desses períodos - enfim, era uma reconstituição do que eles tocavam nos anos de sucesso do início de carreira.

Apresentando-se no Le Club, clube noturno que trouxe o melhor da música para Porto Alegre

Baile na Sogipa, clube social e esportivo onde tocávamos muito

Quando esse repertório começou a modificar-se, por exigência de uma parcela do público, creio que começou a degeneração do grupo. Tocar os sucessos do momento exigia um aparato tecnológico que não tínhamos e também um swing que muitos ali também não possuíam. A primeira perda foi a saída do Luis Otávio, que caracterizava tão bem a elegância dos Anos Dourados - com aquele jeito de galã arrumadinho, um gentleman, uma pessoa generosa e boníssima - além disso, era ele quem cuidava das nossas finanças com maestria, pois também era um executivo brilhante.
Sempre irei recordar do momento em que ele preparava-se para cantar New York, New York - levava no bolso uma garrafinha de metal com um pouco de uísque e antes de interpretar essa canção, tomava alguns goles - "para ajudar a voz, limpar a garganta", dizia.
Brincávamos muito com essa mania dele, afirmando que tomava aquele uísque para criar coragem, pois New York, New York é um desafio para qualquer cantor!
Um tempo depois também saiu o Heitor, outro músico competente e pessoa igualmente agradável de se conviver - foram difíceis os primeiros bailes sem o som especial do seu vibrafone muito bem executado.

Trocamos várias vezes de baterista e cantores, entrou um novo tecladista (pois o Heitor também tocava teclados), os demais permaneceram: Norberto, Raul, Juca, Touguinha, Canela e eu.
Até que a doença arrebatou do conjunto a sua figura mais carismática, o artista maior do grupo: Vitor Canela.
Mas ele merece um post exclusivo, tal a importância da sua figura para a música, apesar de que a cultura brasileira não tem memória, muitos desconhecem a atuação e a existência desse músico notável.
Espero contribuir um pouquinho para divulgar o seu nome e obra.